sábado, 26 de abril de 2014

LIVRE COMO O VENTO; QUENTE COMO O SOL - PAULO CALDAS NETO.

ESCRITOR PAULO CALDAS NETO


LIVRE COMO O VENTO; QUENTE COMO O SOL… 
 Por: Paulo Caldas Neto 

 O título é prenúncio para quem tiver a curiosidade de ouvir o CD da cantora mineira, Lysia Condé, Uirapuru que pousou em paragens potiguares, desde, aproximadamente, 2007, 2008. Seu primeiro CD. Sem título; apenas, conforme já perceberam alguns comentadores, mantendo o seu nome de artista, configura entre as inúmeras produções musicais contemporâneas e chama a atenção daqueles que o apreciam pelo resgate de tons e temáticas que até pareciam distantes do atual contexto sociocultural brasileiro. A leveza da voz de uma intérprete, até então desconhecida no Rio Grande do Norte, nos lembra, em alguns momentos, o carisma e a total entrega àquilo que faz antes só vislumbrados em cantoras como Elis Regina, Maysa e Nara Leão nos idos de 50, 60, 70 e 80. O intimismo com que lê cada canção popular do disco é mais do que uma simples leitura; é um sentimento exposto pelo valor que cada obra musical representa para ela, enquanto artista, e para a História da Música Popular Brasileira. E por que não dizer da Música Potiguar Brasileira, tendo em vista não só a produção no cenário local, da capa do CD até o encarte, como também o fato de certas faixas abrigarem canções, cujos temas retratam a visão sertaneja da Nação? A Lua girou, canção que introduz a obra, dá a prova, à quem a escuta, de que houve a preocupação em se pesquisar ritmos, melodias e acordes do nosso Cancioneiro popular, bastante centrado na raiz do folclore e das origens do povo do Brasil, país assinalado por sua já conhecida diversidade cultural. As congas de Antônio de Pádua, unidas ao violão de Sérgio Farias e à percussão de Sami Tarik acabam dando uma atmosfera luso-africano-brasileira, quebrando com as dicotomias entre o que é considerado erudito e o que é popular, empresa estética na qual Lysia não é pioneira. Quem não se lembra do CD Coisa de Preto (2007), em que Khrystal investe pesado no Coco, enquanto gênero musical que provoca vibrantes e desafiadores ritmos num misto de pop erudito e samba de raiz? É lógico que se está falando de um estilo mais sofisticado, usando estilos popularescos, mas o que importa é a aproximação deles, pois pode-se até se conseguir originalidade. “Eu bem queria fazer um travesseiro dos seus braços”, verso que transmite com lirismo a magia das brincadeiras de roda, típicas das agremiações folclóricas. Ademais, o convite ao sonho e à fantasia acalanta os ouvidos na combinação escorreita entre a voz do uirapuru e as cordas do instrumento congado. Despedindo-se da primeira faixa, com o dito folguedo “Sustenta a palavra de homem/que eu mantenho a de mulher”, o ouvinte agora é colocado frente a frente à mensagem da segunda faixa A vida do rio, composição de Simone Guimarães e Virgínia Amaral, seguindo a linha sertaneja. E o que se sobressai aqui é o acordeon de Zé Hilton, o som de sua sanfona. A intenção é mostrar a simplicidade da vida do campo, a sobrevivência da gente guerreira e feliz. Gente que vive de improviso para, em meio a tanta disparidade social, encontrar algum sentido para continuar vivendo. Mesmo improviso que surpreende na faixa Corta-jaca, canção escrita pela maestrina Chiquinha Gonzaga em parceria com Machado Careca. O humor que questiona os costumes de uma época avigora a singeleza do povo brasileiro, longe dos rigores estéticos e europeizados de uma arte já em declínio num contexto em que a nação procurava a sua independência política. Soava como contrassenso. A retomada dessa ideologia atualiza-se quando se contesta o poder da autoridade; nada melhor do que o maxixe (dança de salão e sensual, de origem moçambicana, trazida pelos escravos, e que teve como adepta a própria Chiquinha Gonzaga no fim do séc. XIX) e a flauta de Carlos Zens para acentuarem tal intenção. Mas como o mundo é uma alternância entre o riso e o choro, a faixa Enigma, um dueto do qual participa Miltinho, expoente da MPB e autor da canção, Lysia Condé revive a época de Ouro do rádio, trazendo novamente a campo a serenata e o melodrama de amor que terão uma pequena mudança rítmica na abordagem que faz da canção Contrato de separação, uma parceria entre Dominguinhos e Anastácia. Zé Hilton se encarrega mais uma vez de compor a cena musical com a sanfona que numa música como essa não pode faltar. A mudança pode estar no perfil daquele cuja dor ou saudade é discorrida ao longo da letra: de um lado, um homem do sertão; de outro, um urbano. Ou o tempo. Cada período histórico com sua forma de expressão. A dor é que é sempre universal. Dando continuidade ao ciclo folclórico e popular, a intérprete nos apresenta as faixas Ana Bandolim e Flor Amorosa. A primeira, de autoria de um potiguar, Tico da Costa, simbolizando a valorização da cultura local, e recentemente homenageado por ocasião do projeto Várias vozes, um só canto 4-Tributo a Tico da Costa no Teatro Alberto Maranhão, ano retrasado (2012). A segunda, de Catulo da Paixão Cearense e Joaquim A. Callado, outros conhecidos da velha toada dos anos 30 e 40. Em Ana Bandolim, as cantigas de amor e de roda roubam a vigília, desta vez, enfatizando mais o ser infantil e a pureza da imaginação. Tudo isso permite a recriação em se tratando do ilusionismo que assegura o fascínio àquele que acompanha seus tons. Depois, ter-se-á um outro desafio para a cantora: a interpretação de Duerme negrito. Na mesma linha, fechando o ciclo, a cantiga, que mais recorda uma cantiga de ninar, de origem venezuelana, promove um intercâmbio que talvez ajude a entender influências de outros Romanceiros populares na Tradição oral do Brasil. Flor Amorosa complementa apenas a toada sertaneja, possivelmente quase ciranda para os leigos em matéria de música e lembrando um pouco a abordagem amorosa de um Pixinguinha em Rosa. Todavia, Lysia sabe que é fundamental se atualizar os ritmos e buscar liames que justifiquem ora gêneros musicais da Tradição oral, conforme já mencionados, ora o pop em si, imortalizado por outros compositores da MPB e por ela também lembrados em outros projetos: Ivan Lins, Dorival Caymmi, Vinícius de Moraes, Chico Buarque e Tom Jobim. Daí, é notória a combinação com o clássico e a Bossa Nova dos anos 50. Primeiro Olhar, de Sérgio Farias e Cristina Saraiva exemplifica o dito, com as notas mágicas da flauta de Zens, outra vez incumbida da amálgama que funde o clássico ao popular. É brincadeira, de autoria do poeta, professor e letrista, Carlos Newton Júnior, em parceria com o músico João Salinas, incrementa ao pop de raiz o caráter lúdico e fecha novamente o ciclo do rural com a canção Mais de um, de Eduardo Gudin em companhia do poeta e letrista Cacaso, ícone da literatura marginal dos anos 70 e 80. Aí, a percussão de Samir Tarik entra em palco para reproduzir a natureza e o lado paisagístico do tema dessa canção. Não se pode esquecer do talento inconfundível de Jow Ferreira, jovem violinista, cuja participação em quase todas as faixas é ímpar quando forma par com Sérgio Farias, criando uma harmonia adequada aos arranjos. Enfim, o que afiança um bom trabalho artístico é o respeito que oferece à base. Atesta-se a humildade do artista a partir do momento em que inicia a sua jornada tomando como apoio os mestres. Seja tradicionalismo, seja conservadorismo para alguns pós-modernos de plantão (ou até mesmo para os que pedantemente assim se denominam com um pseudocomprovante de originalidade, que logo cai no esquecimento), não importa! O passado sempre se fará presente, pois uma sociedade sem passado não se recria, não se reinventa, não se conscientiza de seus valores. É como se o sujeito praticamente negasse a própria história, e isso é prejudicial, é extremismo que leva à frustração. Uma arte não pode ser radical assim. Arte é para se sonhar, sentir. Por isso mesmo, é dinâmica, móbil. O que Lysia Condé nos confirma é a possibilidade de renovarmos sem parecermos antiquados. Atualizarmo-nos, desconstruirmo-nos, construirmo-nos. E só a arte para asseverar tamanho esplendor, tamanha magia, reinvenção. Assim, também o foi o show de lançamento do CD aqui comentado. Só os que testemunharam uma quimera conseguirão guardar na memória a evolução de uma diva, que, com tal produção, ensinará muitos ainda dos que sobrevivem numa província como a nossa, alimentando a própria autoestima, quase sem respaldo financeiro próprio e das autoridades políticas. Nem, muitas vezes também, o reconhecimento da Elite intelectual do RN, que, infelizmente, ainda olha com descaso o talento de tantos artistas e amantes do acervo histórico potiguar. Nós é que temos que agradecer tantos exemplos de força e coragem!

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